Depois de algum tempo sem postar, resolvi reproduzir este texto da minha querida Malu Fontes, que me ilustrou bem a situacao atual da cidade de Salvador, visto que estou longe e procurando informacoes para publicar.
Sem mais, deleitem-se!
TELEANÁLISE Malu Fontes
A Tarde, Domingo, 10 de maio de 2009
Mesmo que seja uma vez na vida, ao fim de uma semana, muitos telespectadores devem eleger para si algumas entre as cenas televisivas mais marcantes, para o bem e para o mal, veiculadas entre um domingo e outro. Para quem vive em Salvador, embora elas não contenham essencialmente nada de novo, dificilmente algo deve se sobrepor às imagens apocalípticas da tempestade que caiu sobre a cidade na terça-feira. Mais do que as chuvas torrenciais em si e as cenas diluvianas de córregos e valas transbordantes e engolindo pedestres e carros, morros desabando e levando junto as poucas coisas de quem já não tem nada, chocavam as cenas e os relatos satélites, ou seja, não aqueles produzidos diretamente pelas chuvas, mas pelos atores sociais, diga-se assim, que formam essa massa indefinida que na falta de coisa melhor chama-se sociedade. Entre as tais cenas satélites, destacou-se uma imagem inominável registrada pela TV Record: garotos de bairros periféricos nadando alegremente em vielas e ruas alagadas. Não se tratava de meninos em fuga com medo da morte ou coisa parecida, mas de crianças nadando por lazer e diversão, como num banho lúdico de chuva, com a diferença que a água era formada por muito mais que pingos da chuva. Continha esgoto, excrementos, ratos, baratas e toda a fauna existente nos subsolos urbanos. Não apenas nadavam, mas surfavam, com prancha e tudo, às gargalhadas. Nem disso a escola pública consegue dar conta, ou seja, sequer consegue contextualizar o ensino, por mais precário que seja, aos fenômenos de risco inerentes à condição de vida dos alunos que vivem em áreas vulneráveis a enchentes. Nadar na lama suja por prazer não é ignorância, é primitivismo, animalização.
KIT LEPTOSPIROSE - Durasse mais a tempestade, corria-se o risco de, novidadeiro e criativo como o baiano é, mesmo quando chafurdando em excrementos, esgoto e pobreza extrema, se ver nos telejornais populares, fazendo par com os concursos toscos das musas dos times do campeonato baiano de futebol, um campeonato de surf na lama. O prêmio seria, certamente, um féretro completo ou um kit de tratamento para a leptospirose, aquela doença de povos desenvolvidos, adquirida através do contato com xixi de ratos. Diluído na água em que se nada, o efeito é pleno. Tão chocantes e grotescas quanto imagens de crianças nadando literalmente na merda, foram as cenas, recorrentes nesse tipo de cobertura, de populares se exibindo para as câmeras em poses macaqueadas, fazendo gracinha, sorrindo, acenando, enquanto se filmavam desabamentos e tentativas de resgate das vítimas soterradas. Falar com a TV é como dar boa noite a William Bonner e Fátima Bernardes, mas que dá alguma vontade de perguntar para os próprios botões algo como 'estão rindo do quê, caras pálidas?', ah dá. Como se isso não bastasse, os relatos de pessoas que ficaram horas intermináveis ilhados dentro dos carros nas ruas e avenidas alagadas enquanto eram vítimas de arrastões que levavam bolsas, relógios e celulares, fechavam com lacre de lama a tese de que o inferno é no Brasil. É violência suplantando violência.
BOYLE DA VEZ - Diante de um passado recentíssimo, em que Salvador foi sacudida por campanhas ostensivas encampadas por redes de TV, supermercados, ONGs e biroscas para socorrer as vítimas das enchentes de Santa Catarina, estranha-se que nada semelhante tenha sido feito para dar uma roupa ou uma cesta de alimentos a quem agora está tão perto. E por falar em Santa Catarina, os baianos que fazem o tipo solidários à distância viram que cinco contêineres de roupas enviadas para as vítimas das chuvas foram filmados, pela Record, sendo jogados em um lixão? Sabe como é o Brasil: rolou uma preguiça, uma incompetência para arrumar as roupas direito, estas ficaram úmidas, com ácaros, fungos, bolores e, para evitar risco de doenças, melhor jogar num aterro sanitário. A solidariedade foi parar no lixão. Enquanto os mais sensíveis se comoviam com tanta ribanceira desabada em todo o nordeste, restos humanos resgatados de escombros e corpos encontrados em rios poluídos a quilômetros de onde sumiram, a TV, dadivosa como sempre, mostrou ao mundo o que os sensatos já sabem: a vida não é justa. Susan Boyle, a cantora irlandesa matrona que viveu cinco décadas para fazer a feiúra entrar na pauta dos meios de comunicação, mal teve tempo de experimentar a condição de feia famosa com exclusividade. Agora tem que dividir os holofotes com Connie Culp, uma americana que era bonita até levar, em 2004, um tiro do marido no rosto, que lhe desfigurou completamente. Os ossos da face foram destruídos, a musculatura desapareceu. Os médicos a submeteram a um transplante de rosto e, 30 cirurgias depois, sem meias palavras, apresentaram ao mundo um frankstein em carne e osso. Ela pediu que não se fixassem em seu rosto, mas na conquista médico-científica que o feito representa. A família do doador disse estar felicíssima. Os telespectadores, politicamente corretos, engoliram seco e pouco disseram. Agora, Boyle é Barbie.
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA.
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